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A Linha e seus Nós:
Desafios nas Fronteiras Epistemológicas

Katianne de Sousa Almeida

Acredito que a escrita antropológica deve ser um espaço possível de experimentações, especialmente, no que se refere ao campo da Antropologia Gráfica. Sendo assim, a escrita assume uma postura  sensível para o diálogo com aquilo que foi observado, ou melhor, por meio de desenhos, ilustrações e poesias neste ensaio se pretende tornar viva a produção do conhecimento.

A produção científica divulgada pelos eventos acadêmicos e pelas revistas especializadas de Antropologia estão, necessariamente, conectadas a uma análise crítica das ações humanas, entretanto, há o mundo do sensível que a escrita acadêmica ortodoxa, por vezes, não alcança e dentro da proposta da Antropologia Gráfica temos mais uma dimensão capaz de capturar elementos que se esquivam.

O ato de experimentar é, na maioria das vezes, um salto no desconhecido, tanto por suas características inovadora e ousada, quanto por enfrentar uma posição de fluidez que, para alguns, pode significar uma desestabilização perigosa no campo da construção do pensamento científico.

Experimentar é um estado de vivacidade, ou seja, é construir uma ciência viva capaz de duvidar de si mesma constantemente. A dúvida é um dos pilares, ou também podemos dizer a curiosidade, daquilo que compõe a produção científica e a pesquisa.

Pesquisamos porque queremos entender, compreender, analisar, teorizar, enfim, em todos esses verbos estamos vivenciando um modo de experiência científica.

As dimensões éticas, estéticas, políticas e teóricas da Antropologia, em seu contexto contemporâneo, onde as sutilezas de um campo disciplinar, compostas por gêneros invisíveis, inaudíveis e indizíveis, não trazem respostas prontas e objetivas, mas coloca este campo o tempo todo em questão, ou melhor em tensão apresentando suas rupturas e deslocamentos.

A potencialidade de uma produção sensível e performática no campo antropológico faz parte da disputa colocada em evidência, principalmente, por pesquisadores indígenas e negros que criticam o modus operandi da Antropologia que, de acordo com eles, ainda usa epistemologias brancas colonizadoras e dificulta a diversidade dos saberes, dos sujeitos e das metodologias.

O reencantamento da Antropologia para além das dualidades que separam sujeito do objeto, natureza e cultura, estrutura da ação, objetividade da subjetividade, o eu e o outro, é uma tentativa de romper com a versão opaca das narrativas controladas pelo olhar centrado e hegemônico. 

Há uma urgência em se revisar as ferramentas analíticas consagradas na Antropologia clássica, ou seja, verificar se elas continuam sendo suficientes para o atual contexto contemporâneo em que as fronteiras estão borradas, ou seja, onde elas estão em processo de dissolução ou explosão.

Pesquisadoras, pesquisadores comprometidas/comprometidos e afetadas/afetados pelos giros contemporâneos (ontológicos, linguísticos, afetivos, discursivos, pragmáticos, antropológicos, ecológicos), identificam a formação de clivagens teóricas devido às ferramentas da modernidade não mais ajudar no entendimento dos processos a partir dos movimentos sociais, dos movimentos feministas, das questões étnico-raciais, regionais, idiomáticas, entre outros. Percebo os afastamentos nas leituras de suas produções acadêmicas, em que reiteradas vezes tais pesquisadoras/pesquisadores utilizam as palavras: rupturas, rompimentos, batalhas, desafios; ou seja, nomes que se associam a tensões.

Infelizmente, muitos denunciam que a Antropologia institucionalizada ficou produtivista e sem tempo para se entusiasmar com o processo e se permitir inovar em movimentos experimentativos. Logo, a convocação final é por uma escrita criativa que desafie a autoridade etnográfica, o rompimento das linhas limitantes das antropologias centrais e a acolhida da convivência entre opostos, a respeito do ficcional versus autêntico, onde as fronteiras em vez de serem descritas como paradoxais sejam tratadas como engrenagens.

Às vezes, enquanto acadêmicos, nos perguntamos qual é a nossa contribuição, de forma mais geral, para a ciência produzida a nível local e também global, pois almejamos corresponder ao investimento ao qual nos sentimos privilegiadas(os) em receber, tanto pelo Estado (dentro das Universidades Públicas) quanto também pela sociedade. Acredito que ao estimular criativamente a produção do conhecimento comprometo-me com o pacto de não perpetuar os instrumentos do epistemicídio na Antropologia, fomentando assim um diálogo transdisciplinar, dinâmico e fluido.

Posto isto, para reafirmar a multiplicidade das linguagens neste projeto, pois acredito que as epistemes são também táteis e não exclusivamente abstratas sinalizo que as ilustrações e as poesias articuladas às produções textuais são caminhos interessantes para a combinação dos afetos e o desenvolvimento da produção do conhecimento.

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Desenho 01 - Salmões-pássaros (Carvão, pastel seco  e caneta nanquim sobre papel)

Entra, fecha a porta.

Cria-se uma atmosfera de segurança, respira fundo.

Não é um ato banal de higiene, estou no exercício.

Ligo o chuveiro, cheiro de água, toque frio, a água escorre e a cabeça se entrega às sensações.

Dois copos estão na bancada e eles são ferramentas do exercício.

Copos, água, banheiro, frio e chuva.

Espaço, ferramentas, sons e vem o suspiro.

O ar entra mais profundamente pelo nariz, garganta, esôfago, pulmões e preenche o corpo.

A água toca cabelo, face, costas, frente e dedos dos pés.

Copos nos ouvidos e eu me preencho de mim mesma e das memórias antes do mundo acabar e logo retorno para aquele janeiro de 2020 dentro do mar, onde eu gritei: até logo!

Só que esse logo não veio e nem sei quando ou se virá.

Fecho os olhos e tento alcançar esse memória numa sensação mais profunda e já me desloco para o barulho das correntezas,

aquelas pequenas quedas d'água que possuem pedras brilhantes.

Seriam pedras ou vagalumes?

Vou levando os olhos para os espaços múltiplos e pequenas luzes que se assemelham ao prisma brilhando incandescentes.

Eu criei os vagalumes, mas de repente se dispersaram e viraram pequenos focos de luz branca em dias de natal.

Porém, essa luz em forma de pontos cada vez se torna mais embaçada e esparsa e vira um enorme borrão e, então, os pensamentos retornam.

Copos, olhos fechados, água do chuveiro são som, visão e tato, tudo torna-se um mergulho dentro daquilo que se quer preencher.

Quando se entra no oceano é você que o preenche ou ele que está te preenchendo?

O movimento de zigue-zague é cheio de dualidades ou dubiedades.

Dentro da água é possível sentir a sensação de mergulhar e também a sensação de voar.

O som dos copos também traz a sensação de estar em um avião ou pular de uma ponte.

Mergulhar com peixes, voar como vagalumes, repousar como as memórias.

O banheiro tornou-se um santuário e foi um refúgio para toda a influência externa de sentidos e de informações.

Dentro desse equilíbrio forjado, o desenho construiu-se como um momento de afago.

Continuava o clima de reduto protetivo e não estavam implicadas as regras de forma, volume e cores.

Na memória eram somente os salmões de Ingold subindo as cachoeiras e que eu os tinha transformado em pássaros.

E este olhar era exclusivamente meu dentro daquela experiência.

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Desenho 02 - Desenrolar (Caneta nanquim e aquarela sobre papel couché cinza 250 g)

Foi mais barulhento dessa vez, pois o som do chuveiro não estava mais lá.

A água com os copos fizeram eco na mente e abafaram os pensamentos.

Sem esse subterfúgio eles gritavam, eles: os pensamentos.

No ato de desenrolar o cordão grosso de algodão seu material, orgânico como a pele, parecia se integrar como tecido, entrelaçando a trama.

Cada enrolar dos fios, como uma cobra que se adapta à superfície, fazem vibrar os microporos sensoriais e levantam os meus pelos, como uma sensação de arrepiar-se ao medo do sufocamento.

Volta o som do barulho, como muitas vozes a pedir atenção e querem apoderar-se do meu corpo.

Entretanto, rapidamente quanto mais fios preenchem dedos, braços, cabeça, pescoço, o calor aumenta e sinto que vou preenchendo e silenciando os pensamentos.

O cordão que enrola também desenrola e volta ao seu quilo de barbante.

No pulsar do encontro tátil há também a experiência do olhar.

O estar ao centro não é tão confortável, pois o centro é o espaço do confronto.

Lembro-me das vozes e as faço escapar também fugindo do olhar.

O olhar vai para cada margem da sala e sempre para cima, as quinas da parede e os desenhos de cada canto são também cada parcela dos fios do barbante de algodão que encosta na pele e novamente a aquece.

Sento, deito e me enrolo junto com o longo barbante que me prende, mas também aquece, são braços que sufocam ou que protegem?

Não sei distinguir a diferença, porque os pensamentos  voltam a gritar.

O desenrolar rápido traz uma sensação de libertação, mas a matéria sem a presença de outra matéria diminui a sensação de calor e volto a enrolar os fios calmamente para sinalizar a despedida do movimento e acalmar as mãos enlouquecidas dos pensamentos que tentam gesticular abraços necessários a me preencher e abraçar dizendo que vai ficar tudo bem.

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Desenho 03 - As nuvens-dragões (Pastel seco sobre papel Velour 260g)

As memórias estão espalhadas pelo corpo

Elas irradiam para além do cérebro

Os labirintos das sinapses se recordam do acalento do olhar para o céu

O céu está intrinsecamente conectado ao alcance, ao mistério e à descoberta

A que também relaciona-se com o ato de meditar

O horizonte, aquele ponto de fuga, até onde os olhos alcançam?

Nas nuvens do céu, o pensamento dissipa-se, adquiro o olhar fica difuso.

Era um dia de chuva, ao que se assemelhou a quase todos os dias dessa

semana.

Entretanto, parecia estranhamente fora do tropical geográfico

Às quatro horas da tarde eu não reconhecia minha vizinhança, esse território

tão cotidiano

Muitas nuvens carregadas e deixou o claro escuro e o dia noite

Todavia, ao longe não se reconhecia o peso do céu sobre a terra

Havia um brilho forte que rasgava a atmosfera.

Fechei os olhos e o brilho também rompia o vazio negro de camadas que se

compunham para desconfigurar o cenário figurativo, ao qual estava exposta

por tantos minutos.

Vidros de requeijão Itambé nos ouvidos e o corpo se lembrou do chuveiro

Retomei aquela quietude

Engraçado, pois não estava chovendo lá fora, mas dentro de mim

transbordava um líquido que preenchia todo o meu ser.

Não era sangue, não era água, não eram pensamentos líquidos, era a fluidez

da presença do ar vinda do céu, o ar virou líquido, pois o sentia percorrer,

sentia correr, sentia navegar...

São inúmeras camadas, os copos, a janela, o céu, o quarto, por onde fluía

meu corpo para além de mim mesma era a sua busca por preencher o

quarto.

O corpo, assim se expandiu, sem gravidade, sem o peso da matéria e as

nuvens nessa dança também se transformavam.

Ora nuvens, ora dragões, ora nada, porque elas não queriam ser nada,

apenas a vagar ou ocupar espaços

Eu estava a flanar no puro objetivo de existir, sequer houve a dualidade da

existência de pensamento ou da sua inexistência; respirar aquele céu saciava

minha sede de viver.

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Desenho 04 - Navegar-se (colagem digital com fotografia e desenho digital no aplicativo Procreate no Ipad).

Pulsa a energia do universo

mesmo diante à ansiedade intelectual.

Espaço e ferramentas de uma experiência

e cada etapa é um aprofundamento

tanto do sentir, da gota que cai, do frio do ambiente úmido, das luzes

que não se cansam de dançar formando uma galáxia dentro do vazio

dos meus olhos e do som que engole os pensamentos para o precipício

da intimidade.

Sinto-me dentro de uma concha, pequena,

navegando sobre meus próprios pensamentos,

já que não há subterfúgios para a fuga

fluxo contínuo.

Dentro do vácuo deste mundo tudo acontece em câmera lenta

a água que percorre o corpo simula um barco que avança ao movimento do vento

o barco não tem qualquer máquina para deslocar-se

aquém do que a natureza ou a sorte podem lhe oferecer.

A embarcação percorre cabeça, ombros, abdômen, costas, pernas, dedos

eu estou sendo minuciosamente explorada e fico com medo,

porque o conhecimento também traz esse efeito, ele escancara o que, por vezes, pode estar escondido.

Ao agachar, o medo se dissipa e me sinto segura,

mas é uma sensação frágil

uma vez que meu tamanho fica menor

estar confortável pode não ser suficiente.

E, muitas vezes, são essas as escolhas que fazemos em nosso cotidiano

ora estar seguro

ora estar confortável

ora estar grandioso

ora estar em paz consigo mesma.

Observo tudo ao redor daquele ambiente

olho para aquele espaço e parece que eu não o conheço

ou desconheço a mim mesma

ou estou naufragando

ou se estou dentro do barco.

São esses os motivos que trazem a fotografia uma maquiagem borrada

que esvai uma produção externa vulnerável

de se manter forte em circunstâncias tempestuosas.

Desenho 04 - A cura prática.JPG

Desenho 05 - a cura prática (Desenho digital produzido no aplicativo Procreate no Ipad)

Com afeto escrevo sobre o sentimento mais inquieto

e que nos move cotidianamente

perpassa todas as lembranças, as vivências presentes e os sonhos futuros: o amor

O amor é um sentimento companheiro

ele nos dá o apoio quando queremos desistir

ou quando nos sentimos enfraquecidos.

O amor tem a textura do beijo que acalenta e afaga,

que protege e faz um carinho

que nos enche de tranquilidade.

Entretanto, ao mesmo tempo que ele traz a calma, a paz e o sossego

o amor carrega suas contradições e perturbações.

Ter amor, fazer amor, estar embriagada de amor

é também estar mergulhada no desejo e na paixão.

Nos devaneios de passos e descompassos

entusiasmada com as chamas desse sentimento que aquece o peito

o amor nos envolve em dor, em perdas e saudades.

Só que no final, o amor significa o meu cordão umbilical com o mundo a metáfora do apego

O que me faz ser o que sou.

Sobre a Autora

Artista Visual e Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Antropologia Social pela UFG, Especialista em História Cultural pela UFG, Especialista em Processos e Produtos Criativos pela UFG. Bacharel em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia, como também Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e Bacharel em Design de Moda pela UFG. Integrante do LABareDA (Laboratório de Desenho & Antropologia), coordenado pela Professora Dra. Aina Azevedo. Integrante do Grupo de Desenho coordenado pela Profa.Dra. Patrícia Reinheimer. Participou da I Mostra de Desenhos Etnográficos Prêmio Pierre Verger (2020), participou da II Mostra Digital de Ensaios Visuais promovido pelo NAVIS – Núcleo de Antropologia Visual do Departamento de Antropologia da UFRN (2021).

1 ilustração - Em busca da pesquisa desenhada - Katianne.jpg
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